As mulheres e o desafio das cidades
03/06/2013 07:43(Cleia Schiavo e Tereza Vitale – 2012)
Hoje, nós mulheres, provamos de múltiplas formas de fazer história, de transformar nossas realidades, de lutar para conquistar nossos direitos civis sociais e políticos. E mais: temos projetos para a melhoria da qualidade de vida das mulheres, na sua dimensão familiar e na dimensão social, urbana e rural. Também temos clareza para conferir e avaliar nossos avanços e precariedades, o que já conquistamos e o que ainda temos a conquistar nesse perverso processo de desigualdade social cuja incidência é maior entre as mulheres. Na prática, somos ainda cidadãs de segunda classe, à mercê de um patriarcalismo vigoroso contra o qual precisamos estar atentas e enfrentar no nosso dia a dia. Nossa luta por afirmação é diária contra a violência que recai sobre nós seja na esfera doméstica, no espaço urbano, no trabalho e na esfera política. A violência física, psicológica, sexual, patrimonial e moral, mescla-se das mais variadas formas dependendo do nível de discriminação, opressão e resistência da mulher. Na prática, pagamos um alto preço pela nossa liberdade, aliás, conquistada em parte com ainda fortes obstáculos a ultrapassar; longo ainda é o caminho a percorrer e a política constitui-se o canal por onde nossas reivindicações poderão ecoar transformadas em atitudes e ações, projetos tornados leis, a bem da qualidade de vida das mulheres. Por meio da política, poderemos criticar medidas governamentais, pressionar a favor ou contra os projetos em pauta e pelo respeito aos compromissos do Estado brasileiro com metas para a redução das desigualdades, não cumpridos. Falta implementar as políticas públicas para as mulheres, falta orçamento público para enfrentar as desigualdades. Enfim, a retórica da igualdade ainda está muito longe de sua verdade.
A luta das mulheres tem sido constante, a cada ano, e mesmo assim as metas prometidas não são cumpridas, de que são exemplo a redução da mortalidade materna, da violência contra elas e ainda sua sub-representação. A redução da mortalidade materna em 15%, por exemplo, era uma meta dos dois Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres. Houve redução, sim, mas os índices ainda são altíssimos. Cerca de 90% dessas mortes poderiam ter sido evitadas com atendimento médico adequado.
Um compromisso fundamental para a autonomia das mulheres é a construção de creches – a candidata Dilma prometeu, em seu Programa de Governo, inaugurar uma creche por dia. No 1º ano não inaugurou nem ao menos uma creche.
Na verdade, precisamos consolidar nosso papel de sujeito político, sermos vozes femininas cada vez mais mais respeitadas do ponto de vista social e político. Paulo Freire, na década de 1960, dizia com base no seu método de alfabetização de adultos, que o diálogo era a base do processo de conscientização sociopolítico. Declarava também ser preciso passar da consciência ingênua para a consciência crítica, ponto de partida para qualificar nossa intervenção sociopolítica. Embora a sociedade do século XXI tenha mudado seu formato, nesse ponto sua teoria continua legítima. Na verdade, a consciência ingênua é capturada pelos políticos populistas e pelos meios de comunicação que não primam por elevar a qualidade de suas plateias.
O movimento pela defesa ao direito e à dignidade da mulher iniciou-se na Europa, mais precisamente na Rússia, Reino Unido, França, Suécia – país onde a mulher no ano de 1862 votou pela primeira vez nas eleições municipais. A luta feminista clamava por emancipação e, ao mesmo em tempo que reivindicava direitos essenciais como os de melhoria das condições de vida, brigava pela conquista do direito ao voto, ao trabalho, ao estudo, à livre circulação. A Revolução Industrial colocou a mulher frente aos problemas sociais e, ao tentar exercitar sua voz em prol de reivindicações coletivas, pagou caro por essa ousadia: No dia 8 de março de 1857, operárias de uma fábrica de tecidos, situada na cidade norte-americana de Nova Iorque, fizeram uma grande greve. Ocuparam a fábrica e começaram a reivindicar melhores condições de trabalho, tais como redução na jornada de trabalho para dez horas (as fábricas exigiam 16 horas de trabalho diário), equiparação de salários com os homens (as mulheres chegavam a receber até um terço do salário de um homem, para executar o mesmo tipo de trabalho) e tratamento digno. A manifestação foi reprimida com total violência. As mulheres foram trancadas dentro da fábrica, que foi incendiada. Aproximadamente 130 tecelãs morreram carbonizadas, num ato totalmente desumano. Em homenagem a essas mulheres, em 1910, decidiu-se em conferência socialista na Dinamarca, que o 8 de março marcaria o Dia Internacional da Mulher, data legitimada pela ONU, em 1975.
Do silêncio à voz pública
Durante séculos, a mulher ocupou um papel histórico de subalternidade; oprimida, sexual e socialmente, viu seus direitos cerceados, sobretudo aqueles referentes ao seu acesso na esfera política; constituía-se, na prática, uma subcidadã isolada dos espaços legais de decisão. Foi nos anos 1920, período de efervescência político-cultural, que os paradigmas conservadores passaram a ser questionados no campo da política (o tenentismo e a fundação do PCB), cultural (a Semana de Arte Moderna), educacionais (movimento em defesa de uma escola pública, universal e gratuita, pretendendo-se criar uma igualdade de oportunidades) e a polêmica em torno da igualdade de direitos entre os gêneros feminino e masculino
Nessa década, a luta pelo direito ao voto feminino ganhou importância no Brasil, seguindo as pegadas de campanhas bem sucedidas na Europa e nos Estados Unidos.
Somente nos anos 1930, as mulheres garantiram seu direito ao voto por meio do novo Código Eleitoral, promulgado por Getúlio Vargas. Em fevereiro de 2012, comemoramos 80 anos de conquista do voto feminino.
Do ponto de vista retórico, a igualdade de direitos entre homens e mulheres era reconhecida em documento internacional, através da Carta das Nações Unidas, na prática, apenas um discurso. Os anos 1970 marcariam também uma década importante para o movimento feminista. Fatos como o reconhecimento pela ONU do dia internacional e a luta das mulheres contra a ditadura mobilizaram milhares de mulheres em movimentos como Brasil Mulher, o Nós Mulheres, o Movimento Feminino pela Anistia, para citar apenas os de São Paulo. O protagonismo da mulher na luta contra a ditadura fortaleceu a expansão do feminismo para além das suas fronteiras clássicas. A melhoria dos espaços urbanos (ruas, bairros) equipamentos sociais etc. Como resultado, na década de 1980, surgem os primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina e a primeira Delegacia de Atendimento à Mulher (Deam). Nesse período, o tema da violência contra a mulher ganha relevo na agenda política de nossas poucas representantes no Parlamento.
No ano de 2006, é sancionada a Lei Maria da Penha. Dentre as várias mudanças, a lei aumenta o rigor nas punições das agressões contra a mulher. Neste mês de fevereiro, galgamos mais conquistas relacionadas ao rigor desta lei que, se não elimina de vez esta mazela social, pelo menos dá maior visibilidade e consequente mobilização da sociedade.
Hoje, embora insuficiente, temos muitas mulheres ocupando lugares de destaque no Judiciário, no Legislativo e no Executivo sendo neste, nossa maior referência Dilma Rousseff eleita presidente da República Federativa do Brasil, em 31 de outubro de 2010.
A luta feminista ampliou-se, volta-se também para a emancipação da mulher na sociedade urbana, o que significa dizer que temas relacionados à opressão da cidade sobre o gênero humano ganharam espaço na agenda feminista. Na prática, as grandes obras assumiram o lugar de políticas de assentamento tão de urgência para a população das cidades. No Rio de Janeiro, comunidades são demolidas, o trânsito bloqueado em nome de eventos efêmeros como as Olimpíadas e a Copa do Mundo.
O papel das mulheres na cidade
O século XXI marcou a cidade como espaço de maior concentração populacional no Brasil. Mais de 80% da população brasileira habita o espaço urbano e as cidades tornaram-se verdadeiras armadilhas para sua população pobre. Enquanto o país chama atenção pelo seu desenvolvimento econômico, ao contrário, seus índices de concentração de renda (5º lugar) e Mundial de Desenvolvimento Humano (IDH) são reveladores. Imaginem que estamos em 84º lugar entre as demais nações. Ao ufanismo crescente pela importância econômica do país anunciam-se sucessivas catástrofes que ocorrem como as enchentes, os desmoronamentos que recrudescem questões já conhecidas como as da precariedade dos assentamentos nos quais habita a população mais pobre das cidades.
A defesa civil não pode dar conta de problemas que são de ordem estrutural. As manchetes dos jornais anunciam, dia a dia, a mazela das mulheres, enquanto a Constituição de 1988 faz crer que somos iguais perante a lei. Uma ironia, não!?
Sobre nós mulheres e respectivas famílias recaem os riscos socioambientais de nossas cidades, sobretudo quando o recorte refere-se às camadas baixas e médias da população: as enchentes, os esgotos a céu aberto, a falta de água potável, os frequentes desmoronamentos dos morros, os incêndios nos guetos de pobreza dizem da vulnerabilidade de uma parcela considerável da população que se situa nos piores territórios das cidades. Afora tudo isto, a contiguidade das residências nessas áreas onde a ventilação e a iluminação natural são precárias favorece a propagação da tuberculose e outras doenças respiratórias e afins à degradação do território. O processo de urbanização, estimulado pela globalização, não fixou um padrão urbano de qualidade de vida que favorecesse o conjunto das famílias em que as mulheres são chefes de domicílios. Verdade é que os premiados foram os investimentos imobiliários.
E como fica a mulher com sua tripla jornada ganhando menos do que os homens e carregando a família nas costas? E o que se pode falar do transporte público e das condições que o mercado de trabalho oferece? Como conciliar a condição feminina e o mercado de trabalho?
A luta da mulher ampliou-se, na medida em que hoje ela luta pela democracia do espaço, por uma cidade democrática que a permita viver com mais qualidade cidadã, uma luta por habitação digna e condições sanitárias satisfatórias para ela e sua família. Nessa direção, o poder local transformou-se em objeto de consideração quando as eleições municipais se anunciam.
Queremos de fato ocupar um lugar político, exercer um papel de protagonismo sociopolítico para intervir com base na formulação de políticas públicas que elevem o padrão de vida das mulheres e seu entorno. São elas quem mais de perto cuidam da formação de seus descendentes, enfrentando os percalços institucionais de todos os tipos; creches, por exemplo, e todos os tipos de equipamentos sociais necessário a um viver democrático: postos de saúde, escola, parques, clubes de vizinhança, espaços de convivência de adolescente, de idosos etc. Na prática, as mulheres incorporam predominantemente os efeitos do déficit democrático da cidade, e muitas vezes assumem até a culpa pelos seus companheiros e filhos envolvidos com a contravenção...
Na prática, já somos atrizes compulsórias de um perverso processo de desenvolvimento pouco voltado para os objetivos sociais que deveriam nortear as políticas públicas de assentamento do país. Quantas de nós dirigem suas próprias famílias, somos mães e pais, trabalhamos, educamos e corremos com nossos filhos para escolas e hospitais. Os dados dizem que mais de 18% da população brasileira são de mulheres chefes de domicílios que carregam suas famílias nas costas, sem o devido amparo institucional.
Na verdade, precisamos estabelecer estratégias para atuarmos como vereadoras, prefeitas e outro qualquer cargo que exija consciência que podemos ampliar nossos espaços de poder. Temos que autorizar nossas presenças, decidir o que é ou não bom para nós, aprender a formular projetos, transitar com conforto na esfera política, enfim sermos cidadãs plenas com conhecimento capaz de atuar nas prefeituras a bem do coletivo de nossos municípios.
A mulher sempre teve poder, mas não sabia que o tinha, não havia consciência nem da sua potencialidade nem do seu valor nem da sua capacidade de ação, de atuação como agente político.
No último quarto do século XX, o conceito de democracia ganhou força e, pouco a pouco, esvaziou a ideia que só com a revolução se chegaria à democracia e/ou ao socialismo. O conceito de vanguarda cedeu lugar ao protagonismo de forças vivas existentes dentro da sociedade civil como os movimentos étnico-raciais e de gênero (de mulheres) que, a partir da década de 1970, se fortaleceram. A voz do cidadão multiplicou-se em múltiplas vozes e ao conceito de democracia moderna incorporou-se a do papel político do negro, das mulheres, dos indígenas, dos jovens, dos portadores de deficiências e outros tantos movimentos.
A fim de viabilizar ganhos, reduzir as diferenças e a desigualdade, o movimento de mulheres tem que ser suprapartidário no sentido de elevar a condição feminina a patamares dignos nunca antes alcançados. Nessa direção, colocamos em pauta para discussão uma plataforma elaborada pelo Núcleo de Gênero Zuleika Alambert que poderá auxiliar as futuras candidatas deste país.
Sobre as autoras:
Cleia Schiavo, doutora em Comunicação e Cultura pela UFRJ é uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Mulheres e do Núcleo de Gênero Zuleika Alambert, ambos organismos do PPS de formulação de políticas para as mulheres.
** Tereza Vitale, educadora, é uma das fundadoras da Coordenação Nacional das Mulheres, onde permaneceu como uma de suas executivas de 2004 a 2010, e, na sequência, do Núcleo de Gênero Zuleika Alambert, ambos organismos do Partido Popular Socialista de formulação de políticas para as mulheres.
—————