Vítimas de estupro
16/08/2013 18:19
Vítimas de estupro
07 Agosto 2013 / Correio Braziliense
DEBORA DINIZ
Acompanhei com atenção o burburinho em torno do Projeto de Lei Complementar (PLC) nº 03/2013, de autoria da deputada federal Iara Bernardi (PT-SP). No último dia para sancioná-lo, a presidente Dilma Rousseff reconheceu a soberania das casas legislativas e assinou a nova lei. O texto é simples — qualifica-se como emergência de saúde o atendimento às pessoas vítimas de violência sexual.
Um ato violento é todo aquele praticado de forma não consentida. As vítimas podem ser meninas, meninos, mulheres, homens, travestis, transexuais, ou ainda outras formas de expressão do corpo e da sexualidade. Pessoas são vítimas. Sim, a lei falou em pessoas, mas curiosamente seus críticos religiosos só se lembravam das mulheres e seus úteros. Falou-se mais de aborto que de violência, mais de contracepção de emergência que de tortura.
A nova lei não altera o cenário legislativo brasileiro sobre aborto. O aborto continua a ser proibido — um crime que pode levar as mulheres à prisão. Essas mulheres são muitas e estão por toda parte: a Pesquisa Nacional de Aborto da Universidade de Brasília/Anis mostrou que, aos 40 anos, uma em cada cinco já realizou pelo menos um aborto. São milhões de mulheres em idade reprodutiva que optaram pelo aborto em algum momento da vida.
Um grupo reduzido delas foi vítima de violência sexual, e suas histórias agora se cruzarão com a nova lei. Fragilizadas pela violência, essas mulheres devem ser protegidas pelo Estado, que reconheceu que atendê-las em hospitais públicos é uma medida obrigatória e emergencial. Repito: não se alterou a lei de aborto; apenas se decretou o dever do cuidado a mulheres vitimadas por um dos atos mais perversos da violência de gênero.
Alguns disseram que a nova lei legalizaria o aborto no Brasil. Não é verdade. A lei nem sequer menciona a palavra aborto e faz uso de uma expressão ampla que se crê neutra como medida de saúde pública — “profilaxia da gravidez”. Profilaxia é termo médico que abarca leque amplo de medidas de precaução, em particular para prevenir doenças. Um menino de 8 anos que tenha sido abusado sexualmente pelo padrasto deve ser profilaticamente cuidado para evitar doenças sexualmente transmissíveis, entre elas o HIV/Aids.
Uma adolescente de 15 anos que tenha sido forçada a uma relação sexual não consentida com o namorado deve ser igualmente cuidada. A diferença entre os dois é que uma adolescente pode ainda engravidar involuntariamente do estupro. Assim, entre as medidas de proteção está a informação sobre contracepção de emergência e aborto legal para meninas, mulheres ou transexuais.
O marco constitucional da lei é o direito à informação — as vítimas devem ter acesso às informações que garantam seus direitos. Os serviços de saúde devem rapidamente se organizar para garantir que a lei seja cumprida: cuidados em saúde e acesso à informação são medidas emergenciais e obrigatórias. Qualquer unidade do Sistema Único de Saúde (SUS) deve estar preparada para atender as vítimas de violência.
Erra quem pensa que esse será um ajuste simples nos serviços: é preciso treinar equipes, organizar redes de garantia de direitos, estabelecer parcerias sensíveis entre a saúde e a segurança pública. Uma vítima pode necessitar de amparo policial, proteção em uma casa abrigo e medidas protetivas de urgência do Judiciário, além de cuidados de saúde.
Como a lei não se refere apenas às mulheres, mas a vítimas de violência sexual, há uma sobreposição entre a saúde, a polícia e o Judiciário que deverá ser objeto de análises específicas. Uma mulher que tenha sofrido violência sexual não é obrigada a submeter-se ao exame de corpo de delito ou mesmo a registrar um boletim de ocorrência para ter acesso aos cuidados de saúde.
A lei fala “em facilitação do registro de ocorrência”, ou seja, na criação de mecanismos eficazes e ágeis para a proteção dos direitos das vítimas. Há particularidades no cuidado de crianças vítimas de violência sexual que seguirão as legislações específicas de proteção à infância.
O burburinho foi importante, mas o objeto da controvérsia foi equivocado. Não é o aborto o que deve nos atormentar quando falamos em violência sexual, mas crianças e adultos dilacerados por atos cruéis e torturantes. A verdade é que a lei anuncia uma realidade insuportável: são histórias de abuso que percorrem a infância, episódios terríveis de estupro que atormentam mulheres na casa ou na rua.
Como um ato de respeito à dor de quem sobrevive como vítima, o cuidado pede menos ruído moral. Os úteros precisam ser esquecidos neste momento — o aborto não é pauta da nova lei. Já vivemos o dia seguinte da lei. O momento agora é o de garantir que o cuidado acalmará o medo das vítimas.
DEBORA DINIZ - Antropóloga, professora da Universidade de Brasília e pesquisadora do Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis)
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